quinta-feira, 30 de março de 2017

Perda como Possibilidade de Transformação...






Ode ao Deus Jano: ou a Perda como Possibilidade de Transformação


Em Janeiro de 2016 foi-me pedido que escrevesse pequenos ensaios mensais para o Blog do Canto da Psicologia. Sem saber sobre o que escrever usar nome dos meses, Janeiro, Fevereiro... como mote para temas que fossem de interesse ao campo geral da Psicologia.

De todos os meses, acredito que Janeiro, seja, argumentavelmente,  o mês com maior carga simbólica. É que o nome Janeiro remete para o deus romano  Jano, o deus das saídas e das entradas.
Trata-se de um deus representado com duas faces, uma que olha para o passado e outra que contempla o futuro. 
Na prática clínica diária, há que admitir, é neste espaço que nos inscrevemos, entre a aprendizagem com o passado e a transformação do futuro.

Espreitar para o passado pode ser um trabalho duro. Porque provoca a sensação de permanência da repetição e permite a emergência de um sufoco claustrofóbico. Mas sem a re-inscrição do passado na estrutura actual perdem-se as referências identitárias  e a possibilidade de aprendizagem com a experiência.

Sem esta aprendizagem, paradoxalmente, fecha-se o ciclo recursivo que promove a repetição, e portanto a perpetuação, do passado, no futuro.

Aceitar o passado como referência do si-mesmo, implica a integração do-que-foi naquilo que-é.

Em 1917, no artigo Luto e Melancolia, Sigmund Freud escrevia uma enigmática e histórica frase: 'e a sombra do objecto abateu-se sobre o eu'.

Perante a perda de algo ou alguém, a mente, tende a apropriar-se das características do ente perdido assumindo-as como suas. Esta é a forma da mente aceitar o que perdeu concebendo agora a sua inexistência como uma existência interna.

Se é verdade que, neste contexto, abre-se a possibilidade de caída na melancolia, também é verdade que esta introjecção promove uma transformação interior.

Esta é, como se sabe, uma transformação que implica sofrimento. 

Acontece que, para o bem ou para o mal, não é possível crescer sem sofrimento. 


Dr. Fábio Veríssimo Mateus
O Canto da Psicologia



quarta-feira, 29 de março de 2017

Um cigarrinho com o Luís Filipe no Tie-Break...







Ter sido estúpido, insolente, inquieto e inconveniente é a prova total e suada de que fui visceralmente adolescente. É-se menino para umas regras, rapaz para outros ditames e já homem para aqueloutras doutrinas, mas no fundo não se é nenhuma dessas coisas e a indefinição caracteriza-nos com a mesma certeza com que o amanhã está-nos cravado no coração a ponta de faca. Ah, a idade do hoje... Tal como o pintor tem a tela em branco para desafiar e o músico o silêncio para romper, o adolescente tem hoje como a maior das promessas e não há um nanosegundo a deixar cair. O mal que fazemos só está na retina das interpretações alheias.


Quando me deu para fumar, ainda acordava cedo, tinha as manhãs gris para cobrir de fumo, os AC/DC e o Luís Filipe Gomes. Não por essa ordem. Fui irmão de todos. Ainda sou. Enquanto encasaco os pulmões, ainda me sobra um solo do Angus para replicar e o Filipe do outro lado do rio para me abrigar das tempestades deste sarilho dos crescimentos que não me largam e me fazem brotar pêlos no orelhame. O Filipe e eu sacamos sempre o miolo do que foi e deixamos umas côdeas do presente do que nos tornámos para depois quando metemos a conversa no tabuleiro. Ele era moreno e vivaz. Eu tinha um tirante a azul debaixo da testa. Ainda temos vestígios de tudo isso, mas interessa-nos sempre o dantes. Sacámos alguma coisa do mundo como dupla de tratantes e isso está nos livros que trazemos cá dentro.

Pisávamos as ruas a correr, jurávamos que isto de sermos eu e ele era um nó de marinheiro indesatável, gostávamos da primavera e de humedecer as excursões escolares com elas. As segundas só nos mordiam quando os leões se esqueciam de deixar uma vitória a nossos pés no dia anterior e o resto era sempre baunilha. A pretexto de desporto, o nosso desprezo pelo mesmo viva no vale do Jamor, sobranceiro ao qual crescemos. Descíamos de raquete na mão. Eu tinha sido mesa-tenista, ele lesa-tenista. Melhor eu tinha feito parte fugaz da Escola de Ténis do Jamor da qual fui expulso por encher a mão pela frente à Maggy Fontelas e o Filipe, surfista dourado, refazia-se de ter abusado da Lúcia numa festa de garagem por, após o beijo, querer enfiar o filete onde não ainda era suposto. Frescuras...

Para curar a falta de ação da cintura para baixo, acalmámos ereções solitárias a descer para o Jamor a brandir raquetes e desembainhadas que vinha aí chanfalho do grosso. Passámos pela mata onde o Filipe tinha enfaixado o bólide do Rui Pedro uns meses antes contra uma árvore que se meteu no caminho (ele ainda não sabia conduzir e fugiu); cruzámos a junção da estrada onde dois anos depois a polícia me obrigou a soprar no balão depois de aspirar um oceano de cerveja (eu ainda não sabia beber mas safei-me porque ser filho do Israel dá jeito) e entrámos no court (sem pagar, escusado dizer) e acendemos cada um o seu cacilho. Primeiro servi de cigarro na boca. Não me saiu mal e o Filipe ficou majestático a vê-la passar. 15-0 cá para o bijou e o primeiro jogo foi meu a cinco passas. Ele empatou quando passou a servir e impressionou-me a refinagem de não cravar o cigarro na beiçola e executar o serviço - gesto técnico dificílimo de dominar – sem o desprender dos dedos indicador e médio da mão direita. Com a terra barrenta do court a ganhar beatas como se fossem gafanhotos mortos de cu laranja SG, a coisa pegou e o primeiro set em 6-6 careceu um esfumaçante tie-break a pulmão aberto. Entre a neblina tabagística, executei uma esquerda perfeita mas com um estalido de diferença: a morder o “naite”. Nem o Lucky Luke disparava mais rápido que a própria sombra até o Morris o desintoxicar e passar a desenhar de outra forma e lhe levar à boca um salubérrimo fio de feno e lhe retirar o estoura-peito. Nisto, achava eu que tinha o Filipe e o “match” no bolso onde só já morava meio maço e assomou pelo court um dos professores da escola de ténis, de todos o mais temido. Como aluno expulso, já antes lhe tinha tirado as medidas. Era filho de puta da parte do pai e um sarrabeco da parte da mãe. Sem pedir licença (no ténis a etiqueta é tão essencial quanto água) resfolegou por estarem “dois cabrõezinhos a fumar no court”. Bradou dois sonoros “o que é esta merda”, expulsou os dois hereges do santuário e, calculámos nós pela sua pinta de conquistador de urinol, que tenha depois tentado seduzir dois cabritinhos da equipa de sub-14. Eu e o Filipe ainda hoje desejamos que ele tenha acabado na pildra por assédio, de preferência coberto por um daqueles negões de roça, dotados de um sarrafo tão grande que poderia até usar relógio.

Um amigo comum topou-me a ser enxotado do nobre complexo do Jamor com o Filipe como quem larga maus hábitos e contou ao “dótór”. Pouco dado ao asneiral, o meu pai rosnou lá por casa, soube da fumarada em sã área desportiva e sentenciou: “Se fazer merda fosse uma cadeira lá na escola, tinhas 20.” Mentira. Perto de muito pirata que conheci, era dez cêntimos de gente e esfolava-me para ter dez. Lá está, depende da retina alheia e a do papá é só para nós.

Como ao lado do Filipe tenho todo o alcoóleo açucarado do que fui e parece voltar num arroubo de energias que julgava perdidas, vou ligar-lhe e é agora que daqui a pouco já não conta. É quase cedo, apetece-me fumar e já sei onde deixei a raquete.
Essa do artista que escreveu “todo o gesto é um sonho morto” e que “não há saudades mais dolorosas do que as coisas que nunca foram” não jogou ténis, jamais se molhou em beijos a Guidas e Lúcias e, de tudo o mais vital, nunca fez merda.

Tristes os que chegam a poetas sem terem sido jovens.

Filipe Dias

Jornalista

O Canto da Psicologia

 
 


terça-feira, 28 de março de 2017

Dieta paleolítica...









É uma das dietas do momento.

Seja pela moda ou pelas redes sociais ou mesmo por alguma figuras públicas, tem vindo a despontar e a destacar-se na alimentação e nutrição.

Hoje quero explicar o que é e como se caracteriza. Vejo muitas discussões e concepções erradas sobre a mesma. Não fazer um juízo crítico ou de opinião, mas só descrever simplesmente o que ela é.

A Dieta do Paleolítico remete para uma era em que os nossos antepassados começaram a usar instrumentos de pedra e a saber manuseá-los. O homo habilis ao ter esta característica abriu um novo leque de opções alimentares recorrendo à caça e à pesca.

O que se comia?
Carne e peixe selvagens, ovos, insectos, legumes, frutas, frutos secos, raízes e tubérculos e sazonalmente mel; diversos alimentos como lácteos, cereais, leguminosas, óleos vegetais, açúcar e sal não existiam até muito recentemente (menos de 10000 anos atrás).


Um dos mitos recorrentes prende-se com a ideia que esta dieta é low carb (baixa em hidratos de carbono). Não é verdade!
Muitos dos povos dessa era ingeriam muitos hidratos de carbono, não através de frutas e legumes, mas acima de tudo sempre que tinham à disposição, inhame, batata doce, yuca entre outros. Recorde-se que estes antepassados já dominavam o fogo.

Outra concepção é que dieta seria baseadas em quantidades exageradas de proteína. Errado.
Sim ingeriam mais proteína do que estamos habituados, mas não em quantidades que fossem exageradas. Excepção a alguns povos como os esquimós que de facto pouco mais do que animais tinham à disposição para se alimentar.


Esta dieta não é só isto, é também um estilo de vida com muita actividade física, sono adequado, exposição solar e muita brincadeira.


Júlio de Castro Soares
Nutricionista
Tlm.: 962524966



quinta-feira, 23 de março de 2017

Nova Relação / Psicanálise Actual





Nova Relação / Psicanálise Actual


        O que alimenta o desenvolvimento é a resposta aprovadora do objecto, a contingência validante do ambiente: “Sim, é isso; acertaste;” / “É isto mesmo, deu certo; acertei” – dizem-me e/ou digo a mim mesmo.
        Assim como a contingência invalidante e/ou a resposta reprovadora são a causa principal da inibição da acção e o consequente adoecer, a contingência validante e a resposta aprovadora é o motor essencial da cura e, portanto, o instrumento prínceps do trabalho psicoterapêutico. A resposta apropriada e atempada é, então, o complemento adequado –  necessário e suficiente –, da parte do psicanalista, à busca espontânea e finalista do analisando; é deste modo que se constitui o conjunto universo ou sistema dinâmico auto- regulado e auto-poiético da criação natural como da cura psicanalítica.
        Da resposta contingente do meio depende a epigénese, quer da doença quer da saúde, quer da inibição do desenvolvimento – com atraso, suspensão, retrocesso e eventuais desvios – quer da promoção  do desenvolvimento – com criação e procriação. É o círculo vicioso patogénico ou o círculo virtuoso sanígeno. Na cura analítica, é a transferência ou a nova relação.
        A velha e a nova psicanálise representam respectivamente a repetição e a inovação, o conservadorismo e a criação, o passado e o futuro, o feedback e o feedforward, o bairrismo e o cosmopolitismo.
        Mas o que querem os pacientes/analisandos? No fundo, mais valor pessoal. E como adquiri-lo? Lutando contra ou lutando por: contra o rival ou pelo objecto – competição versus cooperação (“o que eu ganho é o que tu perdes” vs “ganhamos os dois”). A guerra e a paz¸ o ódio e o amor. O conflito (paradigma da psicanálise clássica) e a colaboração (paradigma da psicanálise actual). O feudo e o mundo.       



António Coimbra de Matos

15 Março 2017



quarta-feira, 22 de março de 2017

Renhaunhau... e os braços de Violete...







Antes deste agora, pelo abandono dos dias a escrever debaixo de luas cheias e quartos minguantes, eu tinha os braços da Violete para me afastar dos sustos do mar de sargaço que é dar por nós a viver e sem saber como isso se faz. O mundo começava-me num quarto de paredes laranja, roçava pela alcatifa coçada e acabava na varanda onde me assombrava a claridade e os cata-ventos da vizinhança com ornatos de galo em lata. Nesses despertares a ouvir flautas de amolador, tinha um cavalito de pau, um boneco esponjoso que gostava de esbofetear e um quadro onde a Cristina me ensinaria a ler sem dar por ela. Devo ter dado pela minha mãe e mais tarde pelo meu pai, mas tudo me faz palpitar que esse freguês cá do borracho apareceu mais tarde. Fizemos carreira juntos depois, até porque não lhe dar a mão em tempo útil seria como o Sinatra ter ido assentar ladrilho antes de cantar o “My Way”. Pela Susana, só dei por aparecer quando a senti pontapear-me convictamente no meio das pernas e puxar da ranhoca para me afastar. Acabámos todos grandes amigos: eu, o velhadas, a Susana, as músicas do Frank e até as expectorações.

Mas como íamos por anteriormentes, antes de tudo isto só me lembro da Violete, que fazia da lida lá de casa uma coisa refulgente, me pegar a cada malho, limpar a cada indolente cagada (um especial da casa!) e dar-me todo o remanso do seu colo a cada vez que o menino começava com a farfalheira da bronquite asmática, a que ela chamava o “renhaunhau dos gatos”, numa promessa de que o ar me voltaria em livramento a evitar um inconvenientíssimo lerpanço precoce. Como o maçarico não se me apagou, toca a enfiar uma bata cá no malandréu e quando dei por mim estava numa casebre a passar-se por externato, onde me sentia qualquer coisa de estranho por já saber ler. No primeiro dia, berrava eu a dar cabriolas por um regresso redentor da Violete que me livrasse daquele penico que me prendia e do qual não podia tirar a pandeireta, enquanto a Suzy abria descontraidamente a cabeça com um tacão de soca à filha de uma empregada do colégio – a Cândida, uma sopeira de Queijas... com os modos que eram de esperar numa sopeira de Queijas. A melhor parte era ir com a Violete e, sobre as coisas todas, voltar com a Violete, como quem saía da imensa negritude de um túnel para, ao alumiar da saída, encontrar o melhor amigo. O colégio no meio das viagens a dar aos calcantes cortava-me a alma em fiapos. Essa merda do pânico acho que me deitou a luva pela primeira vez quando a Violete me enganou a dizer que ficava lá à nossa espera quando nos deixou no cadafalso do portão ferrugento da entrada. A Suzy estava-se olimpicamente a borrifar e a estudar mais outra cabeçorra para abrir com um tamanco e eu agarrado ao regaço da Violete, a rogar-lhe para que ali se mantivesse majestática à espera que o tormento me acabasse. Claro que quando se vararam dez minutos e voltei à porta para vê-la esfíngica e de guarita, dei com um vazio que me fez borbulhar as lágrimas todas que tinha. Depois, deu-me para arrebites, para andar à solha, jogar à bola e fazer os trabalhos de casa do Hélder, que se fosse um bocadinho mais esperto era asno todos os dias. Até meti no bolso uns amigos que continuam bem guardados. Hoje, acho que era a fingir. Fazia-me de forte, mas só porque sabia de mim para mim que a Violete ia aparecer no final para me safar daquela porra toda.

No outro dia visitei a Violete, que vive com a velhice e mora a passos de onde venho. Falei-lhe de como isto vai e vai bem, obrigado. Escrevo alarvidades em jornais e até já me toparam a dizer cavalidades na televisão. Ela parece-me muito contente e ralou-se com os meus disparates. Reluzimos quando nos vemos. Procurá-la e encontrá-la continua a ser o melhor caminho para voltar a casa. Cair nos braços da Violete é sentir o mundo inteiro segurar-me.
E se os gatos me voltam em mais um renhaunhau e ela não está onde me disse que ia estar?...

FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalisa

(Que outro tonto ia estar aqui a escrever sob luas cheias e quartos minguante?...)



quinta-feira, 16 de março de 2017

Porque pai há só um...








Foi ele que me trouxe da Bélgica quando eu tinha apenas 5 anos, quando a minha mãe optou por outra vida e se esqueceu de nós. Ele foi tudo para mim: meu pai, minha mãe, quem me educou, quem me ensinou a defender-me e a lutar pelos meus ideais. Aqui em Portugal, ele deu-me outra mãe, a mim e à minha irmã, a mãe com quem ele aprendeu a ser o melhor pai do mundo, a nossa avó. Da minha mãe pouco mais soube, quando aparecia cá em Portugal só punha o meu pai em causa e à educação que ele se esmerou por nos dar. Devo-lhe tudo o que tenho, tudo o que conquistei e cresci, devo-lhe ser mulher, só por ele pude ser tudo o que sou… Mas hoje em dia também não me consigo esquecer que lhe devo tudo o que não sou. Tem sido tão difícil lidar com este sentimento! Por um lado, ele é, sem dúvida, o homem mais importante da minha vida. Por outro lado, só tenho 30 anos, queria a minha vida de volta, queria pensar em ter a minha própria família, não queria ser “mãe” do meu pai, queria e ainda precisava tanto de ter o meu pai comigo, para me dar conselhos, para me dar carinhos, para ralhar comigo… mas não, sou eu que cuido dele, sou eu que faço tudo por ele, sou eu que o acordo e deito, sempre, e só à espera de um dia em que ele irá sentar-me no seu colo e dizer-me, como me dizia enquanto eu crescia, “filha, gosto tanto de ti”. Como é que posso lidar com este sentimento? Se por um lado o que mais queria era ter o me pai de volta, por outro sinto esta culpa por estar cansada de abdicar a minha vida…” Alexandra, 30 anos (chegou para Psicoterapia por Crises de Ansiedade, associando o pedido ao facto de ser cuidadora do pai).

Há duas ou três semanas que o meu pai está diferente. Não sei o que se passa, mas parece distante, parece mais esquecido, nem se lembra, ao jantar, do que cozinhou e comeu ao almoço. Essa é outra das minhas preocupações, que fique em casa sozinho, que mexa no gás, que possa cair, que saia de casa e possa não conseguir voltar… Nunca pensei que um dia o meu pai deixasse de me conhecer, será que isso poderá acontecer? Também nunca pensei que o visse, um dia, tão vulnerável, ele que nunca me mostrava um sorriso, ele para quem eu só me poderia dirigir em caso de força maior…O médico diz que pode ser da idade, que pode estar, apenas, a atravessar um momento mais triste e deprimido, que poderá estar doente…que poderá ser Alzheimer… E o pior, o pior é vê-lo a sofrer, pois ele sabe que há algo que já não está bem, ele sabe que “já não é o mesmo homem” “. Mário, 52 anos (pediu Avaliação Neuropsicológica para o pai, de 72 anos, tendo o resultado afastado presença de Demência de Alzheimer).


Estes são dois casos em que dois pacientes nos procuraram, não obstante a necessidade de psicoterapia que tinham, por motivos relacionados com a preocupação e cuidado que prestavam aos seus pais.
O pai, essa figura que tem vindo a mudar tanto de papel, de imagem, de fotografia emocional ao longo dos anos e das gerações. Há muitos anos temido, associado à figura, até cinematográfica, do “pai tirano”, aquele que tinha a última palavra, tantas vezes punitiva, tantas outras castradora, aquele de quem a mãe escondia os pequenos ralhetes para que se abafassem no segredo dos deuses, aquele que dificilmente aprovaria o futuro genro, aquele que, em alguns casos, não vestia esse papel nem tinha esse chavão do controlo, mas que tantas gerações, quer por tradição, por mito ou apenas por medo, se privaram do calor e amor do seu colo por receio que ele não soubesse estar lá.

Felizmente, a mudança do paradigma do papel do pai na participação positiva na infância e o seu envolvimento, cada vez mais marcadamente positivo, têm, hoje em dia, uma maior preponderância no desenvolvimento precoce das crianças, futuros adultos, quem sabe futuros pais ou futuros filhos/cuidadores. Se a sociedade de hoje nos pode ter trazido frutos tão positivos, um deles é o cessar do modelo de família tradicional, erradamente organizado segundo uma hierarquia em que a figura paterna se baseava, essencialmente, no poder económico e de controlo e autoridade, isentando-se, na maior parte dos casos, de possíveis manifestações afetivas para com os seus filhos. E há tanto que as nossas crianças podem lucrar, por poder viver todo esse amor paterno, altamente notório no desenvolvimento cognitivo, emocional, psíquico e social de uma criança. Guy Coreant, Psicólogo Clínico especializado nas mudanças no papel da parentalidade ao longo das épocas, afirma que “o pai é o primeiro outro que a criança encontra fora do ventre da mãe”, sendo esta presença que lhe vai servir como suporte e apoio, possibilitando a negação da simbiose com a mãe e a passagem do mundo estrito da família para o mundo da sociedade.

Aqui, pel' O Canto da Psicologia, todos os pais têm um lugar nos nossos divãs: os que são, os que desejam ser, os que lutam pelos seus, os que têm para eles um lugar especial no coração e até aqueles que precisam de se zangar com eles…

Feliz Dia do Pai, é já no domingo, não se esqueça!


Drª Cláudia Ribeiro
O Canto da Psicologia



quarta-feira, 15 de março de 2017

Bia, o antídoto da penicilina...








MARIA VIEIRA DE MESSINES

Aparecias-me sempre cedo e a primeira coisa que perguntavas era se eu já metia as mãos nas mamas das gajas. A desemburrar das pernas e enfiado num pullover de lã rafeira que me fazia sentir enfiado num saco de serapilheira, lá ia o filho do doutor para análises ao sangue e tu, Bia, a dar no batente a desoras, fora do local de trabalho...

Queria que o fronde de Monsanto fosse nunca acabar de arvoredo a ladear estrada ou que demorássemos tudo na descida da Pimenteira. Ansiava nunca chegar porque saber a cantiga cantada a garrote e agulha. A porra das análises ao sangue. "Porra" foste tu que me ensinaste num desvelo de vernáculos. Só sossegava na antecâmara de mais um jejuador despertar esterilizado quando te fisgava, à porta da clínica. Artilhada em banhos de ouro, cheiravas a laca. Ali, à espera do herdeiro dos alicates. Perguntavas se o tamanho do meu penduricalho aumentava e os meus nada púbicos sete anos respondiam que sim. As mamas das gajas eram o assunto recorrente, mas só fiz carreira em apalpões subsequentemente. Numas vezes safei-me. Noutras não. Lembro-me do teu desdém por "paneleires", mas isso seria lá mais à frente do que agora fica atrás. Estar com merdas não era bem o teu mester. Eras a Bia, mas descobri que afinal era disfarce de Maria. Maria Vieira. De São Bartolomeu de Messines, outra estreia absoluta nos meus ouvidos. Despertei em ti para remoques de algarves e asneirada peluda, da rija. Fintámos juntos toda aquela gente feia e ensimesmada nas salas de espera e dizias que eu tinha olhos de bichano. No fim da seringadela, como me sentia trespassado pelo Scaramouche na asa picada, normalmente acabávamos a bolos e meias de leite, já lá fora Lisboa era um espavento. Estava quase sempre a chover. Compravas-me o último Almanaque Disney com o patacôncio que o meu pai te deixara de antemão na Emílio Braga e ainda te esmifrava um cowboy e dois indios em PVC.

Não sei se soubeste, mas uma vez levei uma injeção na bochecha esquerda da pandeireta e deu-me um sarapantéu dos antigos no posto médico de Algés. Só precisava de uma "carvalhada" das tuas como antídoto, mas foi da tua ausência que quase morri da alergia à penicilina (decerto dizias mal penicilina; descansa que da tua boca tudo me soava bem). Naquele susto, acho que foi a primeira vez que disse "foda-se" e em homenagem à tua santidade palavrosa.

"Olha para 'iste'... 'maldeçoades'", ruminavas tu quando voltavas ao consultório do velhote, vinda das análises cá com o brotas, já a sala de espera rebentava de clientes que te lixavam a porca antes de entrarem no gabinete para dar boca e dente à broca. Eu? Bem, eu nessa altura gostava era do teu colo, de te ouvir insultar pessoas com cara de enfado e de rires para mim enquanto lixavas a clientela ao meu pai: "Menes um...", soltavas após o despeitado bater de porta de mais um ofendido qualquer. Mais centímetros depois, desvendei-te um lado erótico menos vestido, o teu desassombro a recontares os cabritos e cabrões que tinhas esfolado - expressão tua, claro.

Um dia não estavas no sítio de sempre e foi para sempre. Deixaste de estar e sem aviso prévio de permanente ausente. No dia em que o Rogério me disse que tinhas morrido, pousei a bebida, larguei a dança e senti-me gelar. Nem tartamudeei um "foda-se", como merecias.
Quando a manhã me torna a desemburrar em contragostos, tenho o meu único par de seios fiéis por perto na modorra e julgo que vejo o passar de um puto com cowboys e índios na mão metido num pullover serapilheiroso, penso na Maria Vieira, de Messines. Se lhe roubasse um borbulharzinho de lágrima, isto de aqui escrever valeria por tudo. Aposto que ela enxugava-se, chamava-me "sacrista" e mandava-me à merda.

Percebo hoje a irreprimível tristeza das salas de espera e porque nelas sou o mais só dos homens.
Por crescer, a única agulha que me pica é a saudade, Bia.
Todos os "bêjinhes"...



Filipe Alexandre Dias
Jornalista



quinta-feira, 9 de março de 2017

Um elogio ao feminino...









Toda mulher parece com uma árvore. Nas camadas mais profundas de sua alma ela abriga raízes vitais que puxam a energia das profundezas para cima, para nutrir suas folhas, flores e frutos. Ninguém compreende de onde uma mulher retira tanta força, tanta esperança, tanta vida. Mesmo quando são cortadas, tolhidas, retalhadas, de suas raízes ainda nascem brotos que vão trazer tudo de volta à vida outra vez.”
Clarissa Pinkola

Ontem foi o dia da mulher, mas há tanto para refletir, que um dia é pouco, para a complexidade do tema. Sobre o ter um dia dedicado a esta celebração, penso que justifica-se, na medida em que foram muitos os sofrimentos, guerras e conquistas das mulheres ao longo dos tempos. É importante relembrar sobre a nossa evolução e história, se recordarmos há 30 anos atrás, a mulher não podia exercer o seu voto, não podia sair do País sem autorização do marido, saia da casa dos pais para casar com o noivo, num ato de passagem, paternalista e condescendente, de pai para o marido. A mulher tinha pouca voz, sucumbia aos desejos do outro, raramente se impunha, ou partilhava as suas próprias ideias, só mesmo em famílias muito evoluídas e especiais é que tal acontecia.

Neste contexto é incrível pensarmos, mas não foi há muito tempo, que as mulheres estavam desprovidas dos seus direitos nomeadamente, identitários, de ter uma voz e um desejo próprio. De certa forma, este inconsciente coletivo, mantêm-se mesmo que conscientemente, se considere que já ultrapassamos estas barreiras, com o surgimento das leis, mas na realidade, sabemos que não é bem assim.

Continuamos a observar notícias diárias, de violência contra as mulheres, todos os anos, em 2015 morreram em Portugal, 40 mulheres e em 2016, foram 30, sendo que pelo menos 19 mulheres são vítimas, todos os dias, de Violência Doméstica (dados retirados da APAV).
Com estes indicadores chocantes e alarmantes, conseguimos ter uma noção, mais clara, de que os direitos da mulher ainda estão em vias de ser implementados, apesar de a violência doméstica estar legislada como crime público. As leis existem, mas na prática o que vem à tona são os modelos relacionais patológicos, ainda enraizados nos preconceitos e na discriminação, quiçá de influência judaico-cristã.



 A mulher ainda está incluída nos grupos “minoritários” não por estar em minoria, mas devido a, por vezes, não investirem numa postura de autodefesa, proteção e enaltecimento do papel da mulher na sociedade e na família. Estes ciclos de violência são transgeracionais e, em certas situações, até as próprias mulheres os podem alimentar, através da forma como educam as suas filhas e seus filhos, assim como, os pais.

Assistimos, desta forma, a uma violência exacerbada e continuada contra a mulher em pleno século XXI. Foram alcançados tantos direitos, no entanto, a força da cultura, da educação dos estilos relacionais ainda falam mais alto, mesmo que pensemos que não. Na verdade são ideias automáticas e inconscientes, que dificilmente são consciencializadas, mesmo que consideremos ter horizontes abertos e grande capacidade de evolução.
A questão não é assim tão fácil, as mulheres em termos societários continuam a ter, de uma forma generalizada, ordenados mais baixos do que os homens, em Portugal, apenas têm direito a 6 meses de baixa de maternidade. Todos estes dados, aparentemente, inofensivos traduzem muito sobre a nossa sociedade, em que ponto está e o quanto, ainda, há para percorrer.

 Infelizmente, em algumas relações afetivas, está presente uma discriminação grave, a existência de relações tóxicas, com padrões desviantes de masoquismo e sadismo, são ligações narcísicas e perversas, de controlo, poder e submissão identitária ao outro. A higienização relacional implica uma mudança de paradigma, sobre o que é considerado saudável ou não nas posturas e atitudes relacionais. Uma relação saudável implica que cada um esteja na relação por inteiro, com auto-estima e com um narcisismo bem nutrido. Narcisismo, este que é construído, na infância e com relações de qualidade com os mais significativos.

Deste modo o feminino que representa a criação, o amor oblativo, a vida, ainda tem de ser respeitado, amado, na liberdade, pois quando se ama o outro, o nosso coração se alegra com a sua felicidade, luz e sucesso.


Dra Mafalda Leite Borges

O Canto da Psicologia



quarta-feira, 8 de março de 2017

Como é isso de voar, Sr. Padrão?







O Ford Granada do meu pai era um corcel verde (já lá vamos, que não é inocente…) tinha o tamanho de um campo de futebol, 3 000 de cilindrada, tragava a rua pela metade mesmo estacionado rente ao meio fio do passeio e abrigava-me o imaginário. Era ligar o rádio, ver a agulha passear horizontalmente até fazer ressoar uma voz domingueira crepitante antes de se limpar quando caía estendida, certeira na estação que me fazia sair da boca do túnel para sentir no peito o grito da bancada.

“À figuuuuura de Carlos Padrão”, avisava o Ribeiro Cristóvão para o Alves dos Santos explicar como é que se tinha chegado ali. Padrão e figura tinham tudo a ver. Claro que o Damas para mim era tudo e tudo mas não o apanhei galã e felino na sua primeira vida por cá; o Bento era um cerrar de dentes de um poste ao outro; o Tibi não me dizia porra nenhuma e o resto dos guardiões, porteiros e arqueiros davam-me dó só de os ver cabisbaixos a recolher a “menina” depois de trespassados por Jordão, Nené ou Jacques. Mas o Padrão para mim era a contra-corrente, o grande dos pequenos, uma lição de história.

Antes de saber que padrão sabia a descobrimentos por todo o mar, já o Carlos guarda-redes me dava aulas de luvas Uhlsport numa saída dos postes de pezinho levantado para afastar a freguesia numa clara antecipação à História que me esperava nos livros. O Carlos Padrão - ou “Cás Padrão” como Lisboa gosta de dizer -, tinha vindo ao mundo no Lobito antes de eu saber que Angola era e é; jogara no Riopele que afinal fora clube-empresa mas tinha uma fonética tão arrepiante quanto unhas a passar na ardósia e saiu-me numa saqueta em cromo equipado à Setúbal (isso de Vitória é só para vitorianos…), de bola laranja bem presa, supercílios escuros a sombrear-lhe o olhos, rosto ossudo cortado a canivete e, cada vez que eu o trazia à conversa para nos fazer companhia, o meu velhote soltava: “Ele já foi nosso.” Tomei-o como vizinho que se tinha posto ao fresco lá da rua antes que eu desse por ele, ou um familiar desavindo por uma dívida ao Tio Leonel, mas claro que era a infinitude leonina do meu pai a falar, enciclopédica em tudo o que era Alvalade e arredores – o Carlos Padrão, descobri depois, começou a deixar de ser moço numa ex-metrópole suja de fresco quando chegou ao Sporting, cheio de África até à última lágrima, à derradeira pinga de sangue.

Ora o Adriano preto de Linda-a-Pastora sabia mais que eu em tudo o que metia cautchú, dois postes e uma trave. Explicou-me que o Padrão também tinha passado pelo Leiria, andara por Beira-Mar e Belém e o pulha sacou-me uma exibição de estalo no frescor de uma tardinha de primaveras no pelado do Bairro dos Bombeiros. Num amigável “ad-hoc”, a minha malta de Queijas metralhou o Adriano de Linda-a-Pastora de todos os flancos e o escurinho cortava o ar, sacudia-a, segurava-a, esconjurava todos os perigos porque o dia era dele. No arco oposto, eu engolia meio frango por cada tiro e levámos um atesto dos antigos. A descer para casa no mastiganço de mais uma humilhação, senti o Adriano dar-me um afago e dizer que o meu mal era não saber voar. Depois, lá voltou ele para a barraca perto da granja onde o Cesário Verde não curou uma tuberculose e eu voltei para casa onde não curei mais uma derrota. Rendi-me da melhor maneira ao esplendor da minha inépcia num treino particular de praia em que um mestre total chamado César Nascimento fez um favor à família, me desenhou duas pirâmides por postes que para mim iam de Cascais a Sintra e a quatro estilhos me fez engolir toda a areia da minha falta de vocação quando a conversa era defender.

Sempre que eu voltava ao Padrão e o perscrutava onde o tinha deixado, ele já lá não estava e demandara a outra latitude. Gostava de me apanhar distraído. Fez furor em Chaves, foi campeão no FC Porto, meteu Paços de Ferreira, Boavista e mais uns quantos na extensa folha de serviço e parece que ainda teve um arroubo de pivô de andebol em Olhão porque a grandeza é feita de mãos, pés e tudo.

Os anos vararam e o jornalismo apanhou-me por aí. Travámos conhecimento, metemos conversa. Damo-nos muito bem. Não será inconfidência dizer que somos grandes amigos. O Padrão apareceu-me depois. Topei-o por Alvalade, apertei-lhe os ossos fugazmente no Bonfim onde o tive em cromo e trocámos amenidades curtas na sociedade das redes de hoje. Muito por culpa da Neuza, filha dele. A Dona Miúda, uma taramela excelentíssima que nasceu para indagar e contar.
Tentei ser concorrência do Padrão a todo o campinho de várzea e falhei miseravelmente, mas a história agora conta-se ao contrário. O homem vai agarrar-me e eu nem bola sou. É que ele voltou a sentir Alvalade como casa, é comentador de fala fluída e, se começa a escrever, arrepio-me só de imaginar o capítulo seguinte depois do que me ensinou e fez sonhar sem nada dizer.

Mas o peso dos ilustres não pesa e se o Padrão também já esquadrinha o relvado da comunicação para perguntar como é, espere pelo toque que ainda vai ter de me dar resposta ao mistério que me fugiu tão lépido quanto a Andreia do 8º7ª quando a convidei para jogar ao bate-pé e ela meteu o pé na tábua a chamar pelo pai.

“Como é que se faz para voar, senhor Padrão?...”
De certeza que me fará a fineza de desvendar o segredo.
Quem viveu pelos ares, vive maior.



FILIPE ALEXANDRE DIAS 
Jornalista



terça-feira, 7 de março de 2017

Não abra mão do feijão...









feijão, elemento comum da nossa dieta, não só mistura sabores como também é uma fonte rica em benefícios para a saúde humana.
Além de possuir nutrientes essenciais como vitaminas (a maior parte do complexo B), ferro, cálcio e proteínas, que estão presentes em quantias que podem até substituir os produtos animais, o feijão também é um recurso terapêutico. O ferro contido nele ajuda na recuperação de anemias, a fibra da cascaO do feijão ajuda a regular o funcionamento do intestino, e o cálcio ajuda na recuperação da osteoporose. Não bastasse isso, o feijão ainda é um alimento fácil de ser encontrado. Portanto, ele é, enfim, uma combinação perfeita.

Esta semana, deixamos-lhe uma das muitas formas de se "usar" o feijão preto que ajuda no controle da hipertensão e do colesterol


Júlio de Castro Soares
Nutricionista
Tlm.: 962524966





quinta-feira, 2 de março de 2017

A invisibilidade do efeito da palavra...





Notas sobre a Invisibilidade

A psicologia, sofreu – e continua a sofrer - desde o seu nascimento de uma grave crise de identidade. Se se queria teorizar mostrava-se incapaz de estabelecer uma efectiva cisão com a tradição filosófica; propôs-se desenvolver uma filosofia própria, mas pecou pela pobreza teórica e ficou muito aquém das intuições dos primeiros pré-socráticos; achou-se em lugar inteligível, e pensou que cisão significasse cegueira, surdez ou ignorância. Navegando à bolina com a filosofia quis cientificar-se, apregoando o positivismo e sobretudo o materialismo, estabeleceu uma relação fusional com a neurologia, por um lado, e com a psiquiatria por outro. Quanto mais cientifica se queria a psicologia, mais se esbatia a sua essência, confundindo o método experimental com cientificação, e ciência com o modelo biomédico; perdendo-se em alicerces epistemológicos frágeis e de operacionalização duvidosa.

Interessou-se pelas manifestações das funções cognitivas, e fundou uma epistemologia baseada no funcionamento da memória, da atenção e da percepção. Desprezou a importância da filosofia, e mostrou-se ambivalente em relação à descoberta psicanalítica. Se por um lado não se ateve nas críticas, acusando a psicanálise de pansexualismo, de perversão e de generalizações abusivas, tornando-a alvo de chacota, por outro lado era capaz de reconhecer as suas principais contribuições, caindo, no entanto, num reducionismo que a remetia à teoria do desenvolvimento psicossexual e ao conceito do inconsciente.

A psicologia nasceu e desenvolveu-se em processo psicótico, observando-se crises de identidade, telescopagem de papeis e escotomizações. Preferiu as perspectivas que dão primazia ao visual e ao manifesto, fixou-se sobretudo nos Estados Unidos e aliou-se às teorias comportamentais, desenvolvendo-se em torno da sua evolução natural e fundando a sua própria escola psicoterapêutica.

A história da psicologia clínica, como a conhecemos, e de toda a sorte de psicoterapias, devem toda a sua estrutura ao advento da psicanálise, transformando-se, modificando-se e desenvolvendo-se sempre, ora em confronto, ora em derivação.
A psicanálise, em contraste, operou num duplo movimento de oposição a esta crise identitária; não se quis ver confundida com a psiquiatria, recusou os sistemas diagnósticos e suas metodologias e renunciou à noção de hereditariedade-degenerescência vigente no final do século XIX e arrastada para o século XX. A psicanálise nasce da mente de um neurologista judeu, mas rompe rapidamente com o paradigma biomédico, mesmo antes do seu nascimento oficial em 1900; movimento que se observa na recusa à publicação do Projecto para uma Psicologia Cientifica (Freud, 1885) e mais de 40 anos depois na publicação d’A Questão da Análise Leiga (Freud, 1927).

A aventura freudiana não se fechou ao conhecimento filosófico, pelo contrário, abriu-se a ele. Respondeu às críticas dos filosofos e muniu-se da filosofia germânica e inglesa, mais notadamente as filosofias de Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Immanuel Kant, John Locke e David Hume. Inaugurou um estilo de enriquecimento teórico, sem nunca colocar em causa a sua integridade, identidade e essência; verificou-se a sua utilidade n-dimensional e teceram-se relações com: a mitologia – e.g. A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900) –, com a literatura – e.g. Gradiva de Jensen (Freud, 1907) – com a filologia – e.g. A Significação Antitética das Palavras Primitivas (Freud, 1910), com a antropologia – e.g. Totem e Tabu (Freud, 1913) –, com a educação – e.g. Educação e Psicanálise (Freud, 1918) –, com a sociologia – e.g. Psicologia de Massas e Análise do Eu (Freud, 1921), e com a religião – e.g. Moisés e o Monoteísmo (Freud, 1937).

Dir-se-ia que existem diversas razões para que a história da psicologia não siga necessariamente o mesmo rumo da história da psicoterapia. Mas muito do que parece explicar esta divergência parece dizer respeito à diferença de olhares, os primeiros, para aquilo que se vê, e os últimos para aquilo que não se vê.
Em 1916, nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, dizia Freud, perante um auditório de médicos e leigos: 

 ‘Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as consequências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos departamentos cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar socorro aos pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na própria psiquiatria, a demonstração de pacientes, com suas expressões faciais alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos senhores numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada um. Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente. Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação em que consiste o tratamento psicanalítico não admite ouvinte algum; não pode ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente, como qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica. Ele fará uma descrição de suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como personalidade homogênea, não admite para si próprio.’ (Freud, 1916)

Para pensarmos; afinal de contas, parafraseando Freud, a ciência moderna, nesta evolução incrível sustentada por bases cientificas, ainda não descobriu um medicamente tão tranquilizador e eficaz quanto  uma boa conversação...



Dr. Fábio Mateus
O Canto da Psicologia