quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O Homem-Brisa...







O homem-brisa nunca levantou a voz, deslizava de pasteleira sem mãos pela estrada e não havia curva nem contracurva que o vencesse. Queria ser aprendiz de serralheiro, mas foi dar com os ossos a Angola, depois de umas chumbadas na instrução primária, uma guarda ocasional das redes da equipa de futebol lá da terra e uma adolescência de baixo ventre viçoso e ativíssimo, à boa maneira do picha de açúcar que nunca desilude saia amiga por campos e hortas.

O homem-brisa nem sequer se chateou quando levou dois estilhaços no pername numa picada africana e regressou da guerra como quem tinha ido só ali à venda buscar meia onça de tabaco. Casou, foi de mecânico a lapidador de diamantes e não cuspiu no fado quando o último ofício o deixou parcialmente surdo. Encarou tudo com um grão de sal porque a vida é isto mesmo e, antes, fez dois filhos igualmente plácidos de juízo e bons de mãos.

O homem-brisa agarra em tudo o que é tralha para fazer muita coisa a partir de quase nada. De dois carros, fez um. Chamou-lhe Bolinhas.

O homem-brisa também não foi por arrelios quando - já cá aqui com o brotas  no pedaço só para atrapalhar -, me tentou ensinar a pescar e nadar a todo o Tejo, assistindo com a brandura dos justos a todas as minhas falhas miseráveis.

O homem-brisa tinha umas galdinas Levi’s de bombazine à boca de sino que ainda lhe tentei gamar em vão.

O homem-brisa é um homem bonito, do rosto ao coração.

Quando penso no homem-brisa nesta estupidez que tem sido a minha existência, irrito-me e sinto a cabeça a arder por não estamos mais vezes juntos só para conversarmos tudo a dizer pouco.

O homem-brisa foi filho, é irmão, pai e tio. Meu tio. O tio Ernesto.
Nunca levantou a voz. Deve ser feliz.



FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalista

O CANTO DA PSICOLOGIA




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